Terreiro Ilê Axè Atará Magba
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Festa das Ayabás. Candomblé. Afro Brasil. Mãe de santo francesa Gisèle Omindarewá. Santa Cruz da Serra. Baixada Fluminense. Rio de Janeiro. Novembro
Álbum
Festa das Ayabás
Da cor de seus olhos às tantas travessias por mares para se encontrar… Em cada passo de Gisele Cossard, um sinal de que a doce mulher é filha da Orixá dos oceanos. O branco de seu tom de pele, o azul que esparrama em todos os seus: olhar de dignidade e carinho. A sua busca por alimentar quem está ao redor, a nossa bênção.
“Não fui eu quem escolhi. Foi Iemanjá quem me escolheu”
Mãe Gisele Omindarewá
A francesa, como muitos se referem a Gisele pelos assuntos do Rio de Janeiro, nasceu em Marrocos quando seus pais moravam por lá. Passou a infância e adolescência em uma França de Segunda Guerra Mundial: viu seu pai ser preso na Alemanha e sua casa se tornar um abrigo para muitos perseguidos. Entre eles, seu futuro marido Jean que com ela dividiu o sobrenome Binon, dois filhos e importantes travessias para África e Brasil: quando ela tinha 27 anos, Jean Binon foi nomeado Diretor de Educação de Camarões que então era colônia francesa; 10 anos mais tarde, ele assumiu o cargo de Conselheiro Cultural da Embaixada Francesa no Rio de Janeiro. Essas andanças de Gisele, movidas pelas mudanças de endereço de seu então esposo, pareciam também atravessá-la por dentro, costurando na mulher de tantas terras… um novo jeito de observar a vida.
Em sua agenda diplomática no Brasil, uma série de encontros culturais que para ela eram indícios de onde encontrar autenticidade pulsante. Nos salões de sua casa no Rio de Janeiro, organizava jantares brasileiros onde oferecia comida local e convidava artistas. Pelas mãos de novos amigos como Abdias Nascimento, Gisele começou a adentrar morros, matas e rodas de onde nunca mais quis sair.
“Existem dois Brasis: o Brasil da sociedade e o Brasil do povo”
Mãe Gisele Omindarewá
Perto da arte e do povo, o Candomblé se revelou a ela como uma religião onde se sentia mais à vontade e, escondida da alta sociedade e da família, começou a frequentar terreiros para assistir aos rituais. Foi discreta admiradora até uma festa de Iansã em 1960: suas vistas escureceram, suas pernas ficaram trêmulas; acordou com a certeza e o medo do mistério que já não podia controlar.
“Quando um Orixá te pega,
você está consciente e inconsciente.
Sempre com uma visão diferente do normal”
Mãe Gisele Omindarewá
Ela, filha de Iemanjá, abraçou o invisível e fez o Santo no mesmo ano, iniciada na fé do povo negro no Brasil pelo Pai Joãzinho da Goméia. Foi ele quem a batizou Omindarewá, branca e de família europeia, era sim do Axé e significava Água Bonita.
Meses depois de sua iniciação, Omindarewá precisou voltar para França: era o fim do mandato de Jean no Brasil. Mesmo em outro continente, ela continuou seu caminho em direção do Axé: separou-se, iniciou uma pesquisa sobre os orixás na Universidade de Sorbonne e publicou uma tese em antropologia com a orientação do sociólogo Roger Bastide e com o apoio do amigo e fotógrafo Pierre Verger.
“Qual é a mulher branca estrangeira que tem a chance de conhecer o Candomblé por dentro?”
Mãe Gisele Omindarewá
Na década de 70, ela conseguiu voltar ao Rio de Janeiro com o cargo de conselheira pedagógica do Serviço Cultural Francês. Nessa época, foi Verger quem a apresentou a seu segundo mestre, o Pai Balbino Daniel de Paula, de Ketu: foi ele quem a ensinou diversos rituais e a incentivou a fazer de sua casa na Baixada Fluminense, o terreiro Terreiro Ilé Asé Atará Magbá que foi aberto em 1973.
O povoado fica a 40 Km do centro do Rio de Janeiro, é abundante em recursos naturais e hoje abriga uma população simples que vive tanto o tráfico de drogas como a fé evangélica em seu cotidiano. Dentro das paredes brancas que cercam o terreiro, a elegância e estudo de Omindarewá se revelam em cada detalhe. No terreno da casa, plantas e animais cultivados por Mãe Gisele, a francesa com a sabedoria ancestral das folhas, para os rituais do Candomblé: em muitas viagens que fez a África, ela pesquisou e trocou sementes e receitas com muitas outras Mães e Pais de Santo. Um quarto para cada Orixá receber as suas oferendas, uma comunidade de mais de 300 filhos de Santo que a mãe fez ao longo de 43 anos de Axé. Muitas visitas para ela consultar o Ifá: o saber do jogo de búzios a acompanhava com sins e nãos precisos e muitas vezes inexplicáveis.
“No Brasil, tudo tem uma razão espiritual”
Mãe Gisele Omindarewá
Rituais periódicos cuidados como os panos africanos que a Mãe Francesa vestia a cada dia: detalhes, camadas de reverência e respeito. Casa cheia uma vez por ano para a Festa das Yabás, uma das mais importantes celebrações do Candomblé que acontece no mês de novembro. Feitura para as orixás femininas como Oxum e Iansã e Iemanjá e Nanã que recebem presentes como lembretes de quem elas são: pratos de frutas são símbolo de fertilidade, atabaques tocam para os Santos, e cabeça a cabeça chegam as guerreiras em uma sintonia que só faz sentido sentindo.
Oxum chega enfeitada e vaidosa, Iemanjá dança trazendo comidas para os seus, Iansã é vento que movimenta a roda. Água Bonita, Mãe Gisele, transborda: pela branca de toque negro. É Iemanjá mãe de todos os orixás e de todos os seus filhos, é a bonança de um corpo que emendou mapas e remendou corações. É o azul dos olhos da francesa com mais de 9 décadas de ser mistério, é a mão clara e enrugada dos feitiços colhidos em árvores tantos chãos.
“Essa é a grande ideia: deixar de pensar, deixar de querer saber o porquê disso ou daquilo.
Deixar as coisas fluírem”
Mãe Gisele Omindarewá
Transborda. É Gisele, é Cossard, foi Binon. É Omindarewá. Uma cabeça de mãe que dançou a mãe de todos os Santos pela última vez naquela roda. Mas é água, fluxo bonito que não cessa, vira manancial de fé que mistura cores em uma aquarela para a aproximação. São olhos que se fizeram nascente, margem, amparo, feitiço para a sede. Água Bonita que transborda.
Entrevistas
Zero Telles
06:23
Outtakes
Jogo de Ifá
05:00