Círio de Nazaré
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Círio de Nazaré. Procissão. Catolicismo. Fafá e Gaby. Belém. Pará. Amazônia. Outubro. 2 milhões de pessoas
Círio de Nazaré
Rua-rio-moto-praça-missa-rua: a imagem da Rainha da Amazônia em andanças de mais de quinze dias, em trajetos pelos arredores de Belém. A cidade, conhecida pelas iguarias da floresta expostas nas bancas do mercado do Ver-O-Peso, torna-se um rio de gente que se movimenta num fluxo só: o da Santinha. Chegam dois milhões de pessoas que se misturam com a imagem do Guamá e do Maguari ao horizonte: sotaques tentando provar e pronunciar Tucupi, Tacacá, Açaí, Taperabá. Palmas, choros, ladainhas e blocos de rua, uma melodia que é como o próprio Pará: exuberância que em tudo é muito, que é tudo junto.
“É como se o nosso ano começasse no Círio.”
Gaby Amarantos
Enquanto o visitante não entende muito em seu primeiro ano de romarias, para o belenense o Círio é Sagrado até quando é só profano. É o momento de renovar a fé em si, na sua família e na sua cultura. São muitos que escolhem visitar os parentes nessa época e não em dezembro, quando é Natal. O almoço em família do segundo domingo de outubro também é ritual: a espiritualidade e a receita da maniçoba são compartilhadas entre gerações. É que no Pará, saber e sabor são quase sinônimos. E para o paraense a Santa católica é tão próxima que tem apelido carinhoso, é Nazica.
Mesa posta e casa cheia, televisão ligada em volume alto com a transmissão da saída da Santa da Catedral em direção à praça, algum mais velho relembra: no ano de 1700, um caboclo de nome Plácido encontrou a pequena imagem da Senhora de Nazaré no Igarapé Murutucú. O caboclo levou a imagem para sua choupana, mas a Santinha sempre voltava sozinha para o local onde foi encontrada: ali onde o caboclo construiu a sua capela, hoje a Basílica Santuário de Belém do Pará. Noventa e dois anos depois, o Vaticano permitiu que fosse feita a primeira procissão em homenagem à Virgem e hoje a celebração é patrimônio do Brasil.
Na sexta-feira anterior, uma réplica da imagem que Plácido encontrou começa a peregrinação: é que a original, como a história já conta, não pode sair do lugar. Vai da Basílica em direção ao município de Ananindeua onde passa a noite em vigília. Às cinco da manhã é rezada uma missa e daí ela parte em Romaria Rodoviária para o distrito de Icoaraci. Em um suporte próprio ornamentado, a berlinda, Nazica faz seu trajeto pela cidade até mais ou menos nove horas. Como a Santa é da Amazônia, ela continua de barco: começa o Círio das Águas, a Romaria Fluvial. Quando chega ao Cais do Porto, em Belém, uma grande quantidade de motocicletas já a aguarda com seus motores quentes e barulhos de buzinas, a Moto-Romaria é a inventividade do paraense em prática para que mais gente possa acompanhar sua padroeira.
Na noite do sábado, depois de mais uma missa em homenagem à Santinha, acontece a Trasladação: fogos de artifício se misturam a luzes de velas, os círios acesos. No domingo, Belém amanhece com a maior procissão católica do mundo, os turistas se juntam aos filhos da terra em mais de três quilômetros de caminhada: palcos dos principais artistas da região entoam cantos para os romeiros e para a imagem da Rainha, bênçãos em cada parada.
“Pois há de ser mistério agora e sempre
Nenhuma explicação sabe explicar
É muito mais que ver um mar de gente
Nas ruas de Belém a festejar.”
Canção Ave Maria, cantada nas procissões e missas do Círio
São mais doze dias de missas, rezas, encontros e festas. Chegam os pagadores de promessas com joelhos no chão, cruzes nas costas, flores e objetos para demonstrar sua gratidão à Nossa Senhora por uma graça alcançada.
Em todos os caminhos: as mãos tentam se aproximar. Perto de Nazica chegar, conseguir ver sua imagem. Levantá-las pros céus é gesto constante em demonstração de respeito, de veneração. Já os pés precisam ser ágeis e resistentes em tanto andar, muitos vão descalços como sinal de humildade e de cuidado: para quem quer chegar perto de Nazica é melhor evitar pisar e machucar quem vai ao seu lado. Metáfora da vida, essa caminhada.
No início da tradição, em uma das procissões, a Santa atolou nessa cidade que então era mais rio que rua. Foi usada uma corda para resgatar a imagem e dessa vez um mutirão de gente repetiu o gesto do caboclo Plácido. Como a cultura ali é da abundância, toda história paraense faz mesmo é render: a cada ano que passa essa corda de gente só aumenta e mais pessoas chegam para mostrar o seu empenho em fazer a fé caminhar.
“Todos os anos eu tenho a sorte de ganhar um pedaço da corda.”
Gaby Amarantos
Segurar a corda é ritual de energia para fortificação da alma: agora o ano vai dar certo, caminhos abertos ao lado de Nazica que sempre proverá! Quando o domingo vai adormecendo e a procissão principal chega a seu fim, os fiéis cortam pedaços dessa corda que é sagrada no suor. Como quase tudo em Amazônia, nos caminhos ela vira objeto encantado e amuleto de sorte. Presente para os conterrâneos que precisam se proteger, para toda gente que sabe o que é carregar um isopor de alimentos nos ombros ao ir embora daquelas margens. Como banho de cheiro, é remédio para curar qualquer dificuldade de fé. É história ribeirinha cantada por velho caboclo, daquelas que dão saudades e vontade de voltar.
Entrevistas
Gaby Amarantos
09:26