Padre Cícero

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Romaria de Padre Cícero. Procissão. Catolicismo. Juazeiro do Norte. Cariri. Ceará. Desde 1889. 500 mil pessoas

Padre Cícero

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Romaria de Padre Cícero. Procissão. Catolicismo. Juazeiro do Norte. Cariri. Ceará. Desde 1889. 500 mil pessoas

Álbum

Romaria de Padre Cícero

“A escrita da luz é dramática e lírica no Nordeste do Brasil. Luz solar, sarça ardente, que só os de muita fé sao capazes de desafiar. A cidade regurgita. São milhares de romeiros, rostos vincados, rosario no pescoço, chapéus de palha e pés calejados.”* 

Quilômetros de caminhadas pela região do Cariri cearense, de joelhos subindo as escadarias. Carregando pernas, corações, olhos... pedaços de corpos esculpidos em madeira. Vestidos de casamento, fotografias, exames médicos. Objetos feitos a mão ou guardados para eternizar: são ex-votos que comprovam que um milagre aconteceu.

“Território sagrado por essa gente que vem de tão longe,

caminho de pedra e areia.”

Gilmar de Carvalho

Há mais de cento e vinte anos que sertões brasileiros vão nessa direção pra chegar perto do Padim: um homem nordestino como tantos outros, que viveu na simplicidade e foi escolhido por Deus para resolver qualquer aperto de seus apadrinhados. Cícero Romão Batista nasceu na cidade do Crato e se inspirou ao conhecer a história de São Francisco: sua vocação era ser um homem a serviço da fé. Ao conhecer a então vila de Juazeiro do Norte, ele se sentiu muito à vontade e em sonho teve a confirmação de aquele era seu lugar. Foi em uma cena semelhante à imagem da Última Ceia que Jesus se dirigiu a ele e ordenou: “Cícero, você cuide dos pobres”.

Naquela vila, o Padre Cícero, que tinha sido um aluno regular no monastério e com notas baixas em oratória, organizou uma irmandade leiga para mulheres, participou das decisões sobre política e, dizem os mais velhos, ia de porta em porta conversar com os fiéis oferecendo conselhos e ajudas

“Aonde vai esse povo

que marcha em romaria?”

Trecho da canção de louvor em romarias a Padre Cícero

E vale lembrar que aquelas terras no sopé da Chapada do Araripe são repletas de outras histórias a contar: de artesãos de couros e artistas rendeiras, de livros de cordéis com desenhos e poesias sobre a cosmogonia local. Os Sertões de Padim Ciço são lugares da história contada no sopé das casa - casos que ainda não estão em livros -, de sabedoria de fazer e render comida em qualquer tanto de sol e com qualquer pouco de alimento, mulheres que tecem rendas com espinhos de mandacaru, gente que acredita em acreditar.

Uma das ladainhas mais repetidas é sobre o grupo de justiceiros que viajava pelo Nordeste para vingar a pobreza dos mais fracos. Virgulino, o Lampião, era um dos principais líderes do movimento chamado Cangaço. Homem temido por seus feitos, Lampião foi um dos tantos que se rendeu ao carisma do padrinho dos pobres e parou pra ouvir as profecias e benzimentos de Ciço antes de seguir seus caminhos.

“Sentir o que Jesus sentia

Sorrir como Jesus sorria

E ao chegar ao fim do dia sei que eu dormiria muito mais feliz.”

Trecho de canção católica

E foi a partir de 1889 que mais gente ainda começou a chegar. Na boca da beata Maria de Araújo a hóstia consagrada por Padre Cícero se transformava em sangue, juram por Deus! O impossível aconteceu várias vezes ao longo de dois anos e rapidamente virou notícia. Aí era gente de todo meio de mundo vindo para ver os panos sujos, a beata, o padre milagreiro.

O milagre emocionou, mas também intrigou muitas pessoas. Em um processo de investigação da Igreja Católica ora foi reconhecido, depois foi desmentido. Padre Cícero foi à Roma se explicar e a história diz que essa foi outra conversa boa. Mas, de volta a terras brasileiras, começou a surgir a notícia de que o homem tinha sido excomungado pelo Vaticano.

“Ser Santo é morrer para si e renascer para uma vida em Jesus.”

Padre Mario de Sousa

Já era tarde! O povo caririense tinha botado fé em Cícero que ali já não era só Santo, como também protetor. Perseguido pelo catolicismo, adorado pelo seu povo. O Padim começou a construir igrejas, pregar sermões e muitos mais milagres concedeu: casamentos impossíveis, curas de mazelas, farturas nas colheitas.

Na parte alta da cidade, o Horto, fez lugar de reza e devoção. Fora do controle das instituições católicas, dizem que naquele tempo o lugar era como uma nova Jerusalém. E ainda é assim durante as oito romarias por ano ao Santo do Cariri: em Dia de Finados vão em cantoria até o seu caixão e nas outras datas são milhões de pessoas a percorrer os mesmos caminhos de um outro homem que morreu suspeito por falar de amor de um jeito simples demais.

O danado é que o povo, sempre o povo, entendia. A beata de tanto sangue na boca morreu enclausurada, o padre foi proibido de rezar a missa. Mas eles todos cantavam juntos as mesmas histórias, com os mesmos sotaques. E parece que nada melhor que tanta música e sorriso no olhar para fazer o Sertão crescer no mundo: são cada vez mais cadeiras bonitas nas portas das casas a esperar os romeiros com suas velas e flores, compondo uma gramática única de gestos, sob o sol implacável.

Tanta beleza e força só pode mesmo ser milagre. Chegou 2015 e o Vaticano oficialmente pediu perdão. Olhou direito, sentou junto e entrou pra andança mais nordestina do mundo: é providência divina, é profecia de Santo!

*Trecho escrito por Gilmar de Carvilho sobre o livro 'Benditos', de Tiago Santana

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